As pedras do crack no caminho da infância

Crianças enfrentam, no único abrigo do Rio, a luta contra a dependência química

Rio - Aos 13 anos, W. troca tudo o que tem para não passar um dia sem o crack. “Ele me chama. Ouço dentro da minha cabeça: sou eu, o crack, vem conversar comigo”, relata o menino, atualmente internado no único abrigo da prefeitura destinado ao tratamento de menores dependentes químicos. O espaço tem 12 vagas, mas só cinco menores estão acolhidos. Um número ínfimo, já que, atualmente, na cidade, estima-se em 500 o número de crianças e adolescentes viciados. Melhorar a estrutura dos abrigos é uma das metas do comitê criado pela Prefeitura para combater o consumo de crack por menores na cidade.
Todos os garotos em tratamento têm entre 10 e 13 anos. A agitação do grupo quebra o silêncio no corredor que liga quartos, banheiro, cozinha, sala de televisão e uma farmácia improvisada. É o universo dos meninos que parecem ter o olhar perdido no horizonte, mas que, na verdade, estão sob efeito de medicamentos para conter as crises de abstinência. “Isso é quase uma casa do Big Brother, tia”, compara um deles. “Acho que estou sendo vigiado. Na rua é bom, porque eu posso tudo, faço o que eu quero. Mas o que eu mais gosto de lá é mesmo o crack”, diz R., 12 anos, que há um ano começou a fumar a pedra. Como todos os que experimentam a fumaça produzida pelos derivados da cocaína —vendida até por R$ 1 e acessível a quem vive na rua — ficou rapidamente viciado.
R. foi um dos 47 menores acolhidos na cracolândia do Jacarezinho, no dia 8. Ele se adianta para explicar como seria a dinâmica dos ‘paredões’ no abrigo. “A eliminação acontece quando a gente consegue fugir. Na rua, é quando se morre de overdose, mas isso eu estou acostumado a ver”, diz o adolescente. Entre os relatos que os monitores ouvem dos garotos, há situações macabras. Como a de que os corpos dos mortos por overdose ou problemas decorrentes do consumo do crack são enterrados pelos traficantes para evitar que se ‘suje’ a área. “É um mito que se propaga. De qualquer forma, tem lógica. Afinal, quase não se tem relato de encontro de cadáver de jovens por overdose”, afirmou o secretário municipal de Assistência Social, Fernando William, levantando uma dúvida sobre o sumiço de corpos de vítimas da droga.
O tratamento para o vício é um desafio. Na unidade onde os adolescentes estão, as perfurações provocadas por chutes e socos, em uma das portas que os isolam da rua, são as marcas do o dependente é capaz de fazer quando vive sob privação. Em momentos de crise, quebram ventiladores, se debatem, agridem os educadores.
Nessas horas, todo cuidado é pouco. Umas das prevenções no dia a dia é manter a sala de primeiros-socorros trancada e esconder desodorantes e perfumes. “Se tiverem em abstinência, eles bebem mesmo”, diz uma das funcionárias da unidade.
Interpretação do ECA divide especialistas
No abrigo da prefeitura, pelo menos na fase inicial, os dependentes químicos ficam isolados em uma parte do prédio. A interpretação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é um dos motivos de polêmica. Há quem defenda que o tratamento fechado não é o mais adequado. No entanto, para a coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública, Simone Moreira de Souza, esse discurso é uma forma de ‘lavar as mãos’ do problema. “Se a lei diz que o Estado deve preservar a integridade das crianças e, se há necessidade de mantê-la internada, isso tem que prevalecer. Não temos no Rio, atualmente, uma instituição pública em regime de internação para crianças. A unidade da prefeitura está muito distante de ser a ideal”, afirma.

Poucas chances de chegar à vida adulta

L., 10 anos, quer ser médico. R., 12, policial do FBI. W., 13, jogador de futebol. Os sonhos são grandes, mas se o tratamento for interrompido, são mínimas as chances de os garotos chegarem à fase adulta. Em média, o viciado de crack morre em dois anos. Apesar da pouca idade, eles mostram ter noção do perigo. “A única opção que eu tinha é o cemitério”, diz R., antes de deixar a sala de videogame e partir para uma luta de ursos de pelúcia com os colegas de abrigo.
Para o médico João Carlos Dias, um dos diretores da Associação Brasileira de Psiquiatria, o vício requer análise sobre as formas de tratamento: “O crack chega muito rapidamente ao cérebro. Isso é tão sério que arrisco dizer que não sei ainda qual é o melhor tratamento para um viciado dessa droga”.

Matéria: CHRISTINA NASCIMENTO
Fonte: O dia Online – Rio de Janeiro/RJ
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